Período abrangido: 1 a 31 de Outubro de 2024
Sumário
Este relatório apresenta e analisa a evolução da ameaça terrorista em Cabo Delgado, referente ao mês de Outubro de 2024.
No período em referência registou-se uma tendência crescente da ameaça terrorista na província de Cabo Delgado. Os distritos de Macomia e Mocímboa da Praia é onde houve registo de maior número de incidentes, dos quais se destacaram ataques e assassinatos de civis ao longo da Estrada Nacional Número 380, entre a aldeia de Awasse e a vila de Mocímboa da Praia; confrontos entre grupos terroristas e Forças de Defesa e Segurança de Moçambique e do Ruanda; detonação de engenhos explosivos improvisados, tendo como alvos as tropas do Governo de Moçambique e do Ruanda e viaturas civis; rapto, assassinato e decapitação de cidadãos civis pelos terroristas.
A resposta do Governo foi marcada por perseguição aos grupos terroristas e alguns confrontos. Entretanto não houve um evento de grande relevo como neutralização/eliminação de líderes importantes de grupos terroristas ou assalto a importante base do Al-sunnah wa Jamah (ASWJ).
O apoio militar a Moçambique, por outros governos, conheceu importantes desenvolvimentos. Registou-se a retirada de equipamentos da Força de Defesa Nacional da África do Sul (SANDF), por via marítima a partir do porto de Pemba, podendo sinalizar o fim das aspirações da Africa do Sul de vir a estabelecer uma missão bilateral em Cabo Delgado, pelo menos a curto prazo.
O tema central do mês é a exoneração do vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), General Bertolino Capitine, e as suas repercussões no combate ao terrorismo.
O General Capitine é homem do terreno e já foi comandante do Teatro Operacional Norte (TON) e goza de grande carisma dentro das FADM. Foi exonerado pelo Comandante em Chefe das FADM, Filipe Nyusi, no dia 4 de Outubro, após ter proferido uma aula pública do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais da Universidade Joaquim Chissano na qual criticou duramente a resposta do Governo ao terrorismo em Cabo Delgado, particularmente o “improviso e a secundarização” das FADM na estratégia de contraterrorismo do Governo.
Este primeiro Briefing Mensal da Ameaça Terrorista em Cabo Delgado – Outubro 2024 – é elaborado no mês em que os ataques terroristas em Moçambique completaram sete anos. O relatório é de acesso exclusivo dos subscritores do THE MOZAMBIQUE TIMES. Se não for subscritor, pode solicitar uma cópia através do e-mail subscriptions@moztimes.com.
Principais incidentes registados
Semana de 01 a 05 de Outubro
- Membros do grupo terrorista Al-Sunnah Wa Jamah capturaram dois cidadãos civis do sexo masculino, em ocasiões diferentes, nos distritos de Mocímboa da Praia e de Palma, e mataram-nos e decapitaram as suas cabeças. Os ataques foram depois reivindicados na revista al-Naba, canal de propaganda do Estado Islâmico Central. Na publicação incluem-se fotografias onde dois elementos do ASWJ com fardamento das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM). Um aparece a degolar a cabeça de um cidadão de braços amarados e outro a exibir a bandeira do Estado Islâmico.
- Na mesma semana, as Forças de Defesa e Segurança de Moçambique e do Ruanda, enquanto faziam patrulhamento conjunto na região de Mucojo, Macomia, entraram em confronto com os grupos terroristas do ASWJ, tendo havido troca de tiros. Não houve relato de baixas por parte das forças governamentais nem do lado dos terroristas, nem de equipamento perdido, nem recuperado.
Comentário: Os confrontos de Mucujo são resultado de uma operação bem planeada e executada pelas Forças de Defesa e Segurança de Moçambique e do Ruanda, que contam com cerca de 500 efectivos militares destacados para o posto administrativo de Mucojo. Esta força conjunta vem levando a cabo operações ofensivas contra o grupo terrorista Al Sunnah Wa Jamah, desde os finais do mês de Setembro e princípios do mês de Outubro, nas suas diferentes bases no litoral de distrito de Macomia, nomeadamente Mucojo, Quiterajo, Pangane, Goludo e Naunde. Para esta operação, a força conjunta emprega helicópteros, artilharia pesada e um forte contingente que realiza acções de perseguição aos terroristas nos seus esconderijos.
Semana de 06 a 12 de Outubro
- Unidades das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique e do Ruanda, em patrulha, detonaram dois engenhos explosivos montados pelos terroristas perto da aldeia de Manica, costa do distrito de Macomia. O incidente resultou na destruição de um veículo blindado e no ferimento de vários militares.
- Na mesma semana, confrontos entre elementos do grupo ASWJ e forças conjuntas de Moçambique e Ruanda, na aldeia de Limala, distrito de Mocímboa da Praia, resultaram em ferimentos graves nas forças governamentais. O IS reivindicou a morte de um militar ruandês em resultado dos confrontos, mas não foi possível confirmar de forma independente.
- Ainda na mesma semana, cerca de 300 dissidentes do grupo terrorista, mulheres e crianças, entraram na vila sede de Macomia onde se entregaram às autoridades governamentais. Outros cerca de 100 entregaram-se às autoridades no distrito da Mocímboa da Praia, segundo confirmou à Radio Moçambique o administrador local, Sérgio Cipriano, indicando que há ainda intenção de mais terroristas arrependidos se entregarem e voltarem à vida normal.
Semana de 13 a 19 de Outubro
Nesta semana houve retirada do equipamento das Forças de Defesa Nacional da África do Sul, de Cabo Delgado, para o seu repatriamento, após meses de espera por um possível acordo bilateral com Moçambique. Os equipamentos haviam sido deslocados para Cabo Delgado no contexto do destacamento da missão da SADC para Moçambique (SAMIM) para ajudar a combater o terrorismo e o extremismo violento.
A missão terminou em Julho mas a África do Sul manteve parte do seu equipamento na cidade de Pemba, juntamente com uma pequena força para a sua guarnição, enquanto tentava fechar um acordo bilateral militar com Moçambique, tal como aconteceu com a Tanzânia. Nesta semana, um navio esteve atracado no porto de Pemba a carregar dezenas de camiões Armoured Personnel Carrier Casspir e outros equipamentos das SANDF para zarpar para o país de proveniência, sinalizando a dificuldade de se estabelecer um acordo bilateral entre Maputo e Pretória. Parte do equipamento repatriado estava em estado mecânico inoperacional.
Semana de 20 a 26 de Outubro
- No dia 23 de Outubro, por volta de 21h, o grupo terrorista atacou a aldeia de Awasse, no distrito de Mocímboa da Praia, localizada ao longo da principal estrada nacional nr 380. Foram assassinadas três pessoas e queimadas algumas residências. O ataque ocorreu por volta da 21:00H do dia 23 de Outubro. Os terroristas vandalizaram estabelecimentos comerciais locais e saquearam produtos alimentares, numa incursão rápida antes da intervenção das Forças do Ruanda, cuja base está localizada a menos de 5 quilómetros a Sul.
- No dia seguinte (24/10), o grupo terrorista atacou, por volta das 20h, a aldeia Mumu, onde matou um homem e incendiou 05 casas. Mumu está localizada ao longo da Estrada Nacional Número 380, a cerca de 10 km da aldeia de Awasse, onde tinha ocorrido um ataque no dia anterior, e a cerca de 30 km da vila sede de Mocímboa da Praia. Ambos os ataques foram posteriormente reivindicados pelo Estado Islâmico.
- No dia 26 de Outubro, três corpos foram encontrados no distrito de Macomia, com sinais de degolação, nas margens do Rio Messalo. As vítimas, todos do sexo masculino, eram dadas como desaparecidas há dias. As famílias das vítimas contaram que começaram a procurar pelos desaparecidos na quinta-feira (24) e no sábado (26) encontraram os corpos nas margens do rio Messalo, do lado de Macomia. As vítimas moravam no distrito de Muidumbe, na comunidade de Mandela. Acredita-se que tenham sido encontrados pelos grupos terroristas a pescar no rio Messalo.
Semana de 27 a 31 de Outubro
No dia 29 de Outubro uma viatura de transporte de passageiros e carga detonou um engenho explosivo no posto administrativo de Mbau, sul de Mocímboa da Praia. Morreu no local, imediatamente, o motorista e várias pessoas ficaram feridas. Elementos do grupo terrorista, que estavam escondidos nas imediações, abriram fogo contra as vítimas e depois saquearam os bens e raptaram algumas pessoas cujo número não foi possível apurar. O Estado Islâmico reivindicou o ataque dois dias depois através de uma publicação nos seus canais de propaganda.
Comentários:
Os incidentes ocorridos no mês de Agosto mostram que os grupos terroristas continuam a ter capacidade de resistência apesar de várias operações de combate que têm sido levadas a cabo pelas forças conjuntas de Moçambique e do Ruanda. Os distritos de Macomia e Mocímboa da Praia, concretamente a faixa litoral, continuam a ser os principais redutos do grupo ASWJ. Estas são zonas que oferecem vantagem táctica ao grupo dada a condição do terreno, caracterizada por matas densas, o que dificulta a mobilidade da força mecanizada para a realização de operações da força aérea. A zona próxima ao mar, facilita aos terroristas a ligação com os centros urbanos para a busca de produtos alimentares.
As operações conjuntas das forças Armadas de Defesa de Moçambique e as de Ruanda têm conseguido reduzir de forma significativa a capacidade operacional dos terroristas, mas a ameaça terrorista ainda continua elevada.
As forças armadas de defesa de Moçambique precisam de fortalecer a sua capacidade de patrulhamento marítimo por forma a cortar as linhas de abastecimento dos terroristas por essa via, incluindo outras linhas que mantêm a resistência terrorista activa.
As forças conjuntas de Moçambique e de Ruanda demonstram ter fragilidade na identificação e desactivação de engenhos explosivos que de forma recorrente são detonados e danificam os seus meios de locomoção.
General Bertolino Capitine dá peito às balas em defesa das FADM
General Bertolino Jeremias Capitine durante a palestra no CEEI
Sob pretexto das celebrações de 60 anos das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), assinaladas a 25 Setembro, o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais da Universidade Joaquim Chissano convidou o vice-chefe do Estado Maior General das FADM, o tenente-general Bertolino Capitine, para uma aula subordinada ao tema “Forças Armadas de Defesa de Moçambique: transformação militar, experiências de combate ao terrorismo e desafios perante as ameaças contemporâneas’’. A aula foi proferida no dia 30 de Setembro e no dia 4 de Outubro, o general foi exonerado das suas funções.
Em Moçambique é raro ver-se uma alta patente militar a aparecer em público para palestrar e sobretudo para falar de assuntos candentes que marcam a actualidade do país, muito menos para falar, sobretudo no contexto actual, da ameaça terrorista na província de Cabo Delgado.
Por isso, o evento foi muito concorrido, com a presença massiva de académicos, figuras ligadas ao sector de defesa e segurança, think tanks e alguns meios de comunicação social.
Na sua palestra, o vice-chefe do Estado Maior General, tenente-general Bertolino Capitine, abordou as questões que caracterizam as FADM ao longo da sua história, misturando elementos mais marcantes e de glória das FADM e o lado que assombra a organização por dentro, incluindo o desinteresse do Governo por questões de defesa e segurança do país.
Dos momentos de gloria referidos pelo palestrante, destacou a determinação das FADM/FPLM na consolidação da independência e defesa da soberania face à insurreição interna da Renamo e agressão externa levada a cabo pelos regimes minoritários e de supremacia branca Ian Smith, no Zimbabwe, e do Apartheid, na África do Sul.
O general Capitine destacou que foi no mesmo período que as Forças Armadas, sob a direção do presidente Samora, foram capazes de assumir missões de apoio à paz e libertação dos povos irmãos ainda sob opressão e ou em conflito, citando os casos da Tanzânia e Uganda, Timor-Leste, Zimbabwe e África do sul.
Finda a guerra de desestabilização, segundo a narrativa oficial, por meio do Acordo Geral de Paz de 04 de Outubro de 1992, o palestrante mergulhou naquilo que designou de “fase sombria”, que passou a caracterizar as FADM constituídas pelas antigas forças beligerantes, o exército nacional e os guerrilheiros da Renamo.
Segundo o palestrante, as Forças Armadas de Defesa de Moçambique enfermam, a nível interno, de sérios problemas de comando e direcção. Este problema degenera noutros males dentro da organização como são os casos de falta de planeamento orgânico, falta da definição de um parceiro certo para compra de equipamento e material militar, falta de um debate interno para a solução de assuntos da vida institucional com vista ao alcance dos objectivos e tarefas constitucionalmente atribuídas.
Outro problema levantado pelo palestrante é a falta de interesse, pelo poder político, para com as Forças Armadas. O poder político, ao longo dos tempos, colocou as Forças Armadas para o segundo plano, passando a dar espaço e primazia à Polícia. Resultado disso, referiu, é que as FADM regrediram bastante quando comparado com a capacidade que outrora detinham, que granjeava de prestígio e respeito a nível regional e internacional. Deu como exemplo que o sector de defesa tem um orçamento muito reduzido, facto que dificulta o seu reequipamento e modernização, segundo os padrões internacionais.
Com relação à experiência das FADM no combate ao terrorismo, este foi um assunto que mais polémica trouxe na apresentação do general Capitine, o que, certamente, lhe valeu a sentença de exoneração a 04 de Outubro.
No entender do general Capitine, a prevalência do terrorismo em Cabo Delgado deve-se, em primeiro lugar, ao desinteresse do poder político para com questões de defesa e segurança. Referiu que o poder político não conseguiu, até ao momento, através do Conselho Nacional de Defesa e Segurança, assumir uma posição em relação ao terrorismo em Cabo Delgado e, por conseguinte, declarar o estado de guerra, elemento central que daria mandato às Forças Armadas para a sua actuação.
O general colocou um conjunto de questionamentos como:
- Sem a declaração da guerra pelo CNDS, com que base legal o Governo convidou a intervenção militar da SAMIM e do Ruanda no país. Com a declaração da guerra, todas as forças subordinar-se-iam às FADM.
- Questiona o protagonismo da Polícia da República de Moçambique em questões de guerra em Cabo Delgado, em detrimento do seu papel, constitucionalmente incumbida, que é de garante da segurança pública.
- Questiono o facto de, volvidos 7 anos da ameaça terrorista, o país não ter ainda uma estratégia nacional de combate ao terrorismo.
- Questionou a situação de, mesmo com o terrorismo, que requer uma atenção acrescida e envolvimento directo das forças armadas, o Governo nada fazer para garantir um investimento e apetrechamento das FADM com meios de combate e logística adequada.
- Questionou a razão de o Governo gastar somas avultadas de dinheiro a investir nas forças estrangeiras enquanto pode investir nas FADM. Alegou que esta situação demonstra, mais uma vez, uma acção intencional e o desinteresse do Governo em garantir a segurança do país.
- Questionou a propaganda falaciosa sobre os resultados das operações no teatro, ao publicar números de terroristas mortos e situação de estabilidade distante da realidade. Indagou como o Governo pode estar a falar de haver situação calma em Cabo Delgado enquanto existem ainda muitos locais, incluindo sedes de distritos e postos administrativos, onde não se iça a bandeira nacional.
Os vários questionamentos de Capitine valeram-lhe a exoneração no dia 04 de Outubro de 2024, mas parece que o general estava ciente de que poderia ser exonerado ao proferir aquela palestra.
Os pronunciamentos de Capitine podem ser percebidos em duas perspectivas, individual e institucional. Na perspectiva do individuo, o general Capitine é conhecido no seio da comunidade militar como uma pessoa íntegra, com convicções próprias e elevado espírito patriótico. Proveniente da Renamo e uma carreira militar briosa, conhece muito bem o funcionamento da instituição militar.
A nível institucional, o general foi à palestra acompanhado de oficiais superiores e generais, pelo que levava mensagem das Forças Armadas. Os vários problemas e questionamentos que foram por ele levantados fazem o dia-a-dia dos murmúrios dos militares, desde a mais alta patente até ao soldado.
Enquanto isso, a medida tomada pelo Presidente da República e Comandante-Chefe das Forças de Defesa e Segurança foi recebida com desagrado pelas FADM e aumentou o fosso entre os militares e o Presidente Nyusi.
As chefias militares entendem que o Presidente Nyusi preferiu sacrificar o bem-estar da maioria para preservar o Poder, exonerando o vice-chefe do Estado Maior General, que era muito respeitado pelos seus “camaradas de armas”.
Por outro lado, a exoneração do general Capitine espelha, também, a continuada guerra silenciosa que prevalece entre a liderança da Frelimo e os ex-guerrilheiros da Renamo integrados nas Forças Armadas, como resultado do AGP de 1992. Há sérios relatos, até denunciados pelos oficiais vindo da Renamo, sobre a sua exclusão nas decisões estruturantes da vida das Forças Armadas, facto que poderá ter ditado o afastamento do general Capitine sem hesitação.
O general Capitine chegou a exercer, de facto, as funções de chefe do Estado Maior General (CEMG) das FADM, no intervalo entre a morte do anterior CHMG, general Eugénio Mussa, e a nomeação do actual CEMG, Joaquim Mangrasse. Entretanto nunca foi nomeado para o cargo máximo das FADM, alegadamente devido à sua proveniência da Renamo, embora nada tenha a provar sobre a sua lealdade às FADM.
O general Capitine já foi comandante do Teatro Operacional Norte, em Cabo Delgado. Foi o escolhido pelos colegas para dar peito às balas pelas FADM. As altas patentes militares esperam que, apesar da exoneração do general Capitine, a exposição pública dos problemas que enfermam as FADM, principalmente num contexto de ameaça terrorista, leve o Governo a tomar medidas para a valorização e restruturação das FADM (MS/LR&BN)