Por Hilário Chacate, Docente de Relações Internacionais
Maputo (MOZTIMES) – A actual crise pós-eleitoral que Moçambique enfrenta pode ser explicada pela forma como é feita a distribuição do poder político e económico, baseada numa perspectiva neopatrimonialista, e pelo modelo de jogo de soma zero, no qual o vencedor leva e controla tudo.
A primeira República, a partir de 1975, foi configurada numa lógica em que a linha que separava o Estado, o Governo e o Partido era bastante ténue, no concreto inexistente. Mesmo com a transição, em 1990, de um regime de partido único e de uma economia centralmente planificada para o multipartidarismo político e liberalismo económico, a cultura política do governo da Frelimo mostrou-se muito pouco flexível.
A concepção do poder político e económico baseada na visão neopatrimonialista foi contestada, logo no início, pela Renamo. Entretanto manteve-se disfarçada através de uma democracia teórica e da realização sistemática de eleições gerais e autárquicas.
Hermet et al[1]definem o neopatriminialismo político e económico como uma ordem política na qual quem rodeia o príncipe participa do processo de apropriação, graças à extensão controlada das práticas de venda, de privilégio, de propenda ou de feudo, por um lado. Por outro, destacam-se elementos que favorecem a personalização da autoridade e a confusão entre espaço público e espaço privado.
Deste modo, os que concebem o poder à luz do neopatrimonialismo têm uma certa dificuldade em compreender os seus limites de actuação e olham para a máquina estatal como um instrumento ao serviço dos seus interesses privados e dos que por eles são cooptados (clientes) e legitimados para fazer parte da máquina.
A cultura política em Moçambique, sobretudo a dos dirigentes do partido no poder, consiste em ver as instituições do Estado, incluindo as oportunidades económicas e políticas, como propriedade privada do partido no poder. Por conseguinte, a partidarização do aparelho do Estado surge como consequência deste entendimento de que a máquina estatal se confunde com a extensão da propriedade partidária e do governo.
A percepção de que o poder como recurso é uma pertença exclusiva de uma pequena elite constituída pelos libertadores, ou pessoas próximas a estes, tem sido a fonte da exclusão socioeconómica e política da maioria dos moçambicanos, por um lado. Por outro, este entendimento tem vindo a reproduzir e a consolidar a ideia de que apenas uma minoria ligada ao partido Frelimo deve ter acesso e o controlo das oportunidades, cabendo–lhes redistribuí-las a seu gosto.
A paisagem económica e empresarial moçambicana em que as figuras proeminentes do partido no poder, ou pessoas próximas a estas, controlam quase todos negócios, desde os mais lucrativos até ao fornecimento de material de escritório e serviços de limpezas nas instituições públicas e privadas, constitui uma das evidências de que estamos diante de um Estado baseado em neopatrimonialismo e no clientelismo, e que privilegia a uma pequena elite e àqueles que por esta são legitimados, em detrimento do colectivo.
Ao longo de várias décadas, este cenário foi construindo um sentimento de privação relativa por parte de vários substractos da sociedade moçambicana que se sentem excluídos das ínfimas oportunidades que o país oferece. Factores como o uso excessivo e desproporcional da força por parte das autoridades policiais contra os que revindicam os seus direitos, a violência estrutural que se manifesta através de opulência financeira de uma minoria no meio da miséria e na presença de grandes capitais no contexto de exploração dos recursos naturais despertaram um sentimento de frustração e agressão, como temos estado a assistir nas manifestações violentas em curso no país.
Outro factor que emerge como um dos móbeis de conflitos em Moçambique é o modelo eleitoral “the winner takes all” que vê as relações políticas como um campo no qual diferentes jogadores entram em disputa pelo poder e a vitória de um jogador significa, automaticamente, a derrota dos demais. O vencedor, para além de controlar tudo, não deixa nada para os vencidos.
Na opinião de Newitt[2], há uma série de factores que perigam a democracia moçambicana. Contudo, qualquer compreensão do problema deve começar com a ideia de se ter declarado Moçambique como um Estado unitário sem previsão formal para qualquer forma de partilha de poder. Desde 1992 concordou-se que as eleições nacionais seriam um jogo em que o vencedor levaria tudo. Nas democracias mais vibrantes isso não é visto como um grande problema. Presume-se que nenhum partido terá o poder indefinidamente. No caso de Moçambique, a Constituição previa um elemento significativo de descentralização e democracia local. O plano era dividir todo o país, tanto as áreas rurais como as urbanas, em 128 municípios que seriam controlados por um edil democraticamente eleito e uma assembleia municipal.
No entanto, logo após as eleições inaugurais de 1994, a ideia de descentralização foi diluída e foram apenas constituídos 33 municípios em áreas urbanas, e que visivelmente seriam ganhas pelo partido no poder. Isso teve como efeito a exclusão de cerca de 75% da população de ter voz directa no governo local. Discordando com esta mudança, a Renamo boicotou as primeiras eleições autárquicas de 1998.
Volvidas várias décadas após a adopção do multipartidarismo em Moçambique, pode-se concluir que o principal objectivo político ao protelar a descentralização era de enfraquecer a influência da Renamo, no que diz respeito à estrutura do governo local, e garantir que o controlo dos recursos naturais do país permanecesse nas mãos do Governo central, controlado pelo partido no poder[3].
No entender de Cahen, o conceito de “o vencedor leva tudo” foi o cancro da vida política de Moçambique no período pós Acordo de Roma (1992). Os eleitores da Zambézia, por exemplo, podiam sempre votar a favor da oposição, mas o governador era sempre da Frelimo. A totalidade dos administradores de distrito eram da Frelimo, a totalidade dos chefes de posto eram da Frelimo, a totalidade das autoridades comunitárias reconhecidas eram da Frelimo, os chefes dos departamentos eram da Frelimo, os 7 milhões (uma iniciativa do presidente Guebuza que alocava recursos financeiros para financiar iniciativas de desenvolvimento distrital) eram para os amiguinhos da Frelimo. Isso nutriu a exasperação e o absentismo eleitoral em massa e o perigo de nova guerra, em 2014 -2015, porque havia uma massa considerável de jovens muito pobres sem esperança alguma de poder mudar a situação pela via pacífica[4].
Portanto, fica evidente que a configuração do poder político e económico baseada numa visão neopatrimonialista, associada ao modelo de jogo de soma zero, tem sido uma das fontes de discordia e tem contribuido para alteração substancial dos alicerces que sustentam uma paz bastante frágil em Moçambique. Daí que se mostra urgente e inadiável a reforma profunda dos mecanismos de distribuição de poder, a vários níveis, por forma a evitar males maiores nos próximos tempos. (HC)
[1] Hermet Guy, Bertrand Badie, Pierre Birnbaum, [et al.], Dicionário de Ciência Política e das Instituições Políticas, Lisboa, Escolar Editora, 2013, p. 229.
[2]. Malyan Newitt (2017). A Short History of Mozambique. Oxford University Press, UK
[3] Ibidem.
[4]. Jornal Savana, Disconcetração, Descentralizaçao ou Democracia:Um Olhar de Michel Cahen, Maputo, Edição do dia 23 de Fevereiro de 2018. P.2.