“A violência como forma de alcançar a justiça racial é impraticável e imoral. Eu não desconsidero o facto de que a violência muitas vezes traz resultados momentâneos. As nações frequentemente conquistaram sua independência na batalha. Mas, apesar das vitórias temporárias, a violência nunca traz paz permanente”, Martin Luther King Jr.
Por: Ernesto Nhanale, Professor de Jornalismo
Maputo (MOZTIMES) – Inicio esta abordagem ao convite para “renegociarmos o contrato social com o Estado”, pois, podemos, em algum momento, cair no risco de percepcionarmos que o grande problema que atravessamos hoje, em Moçambique, são as manifestações violentas que vemos nas ruas e, por erro, concertarmos as nossas soluções somente nas manifestações e adiarmos o problema. Obviamente que é importante pararmos com as manifestações violentas para termos espaço de resolver o problema. O mesmo se faz quando há um incêndio. Apagam-se as chamas, mas procura-se pela fonte para descativá-la. Entretanto, a solução do nosso problema, em Moçambique, não passa pela violência. A violência leva-nos a um ciclo vicioso sob o qual o problema irá manter-se intacto, como um circuito que se retroalimenta.
Neste sentido, este artigo propõe-se a olhar para as manifestações enquanto efeitos de um problema que enferma o nosso Estado, a chamada “Democracia Autoritária”. Um conceito muito bem discutido na ciência política para designar regimes caracterizados por realização religiosa de eleições, mas marcadas por fraudes e que, no final, o mesmo actor político ganha-as e governa sem aceitar a participação cívica e a contestação, isto é, pouco aberto à prestação de contas e a responsabilização.
A Frelimo apresenta-se como um partido dominante e com uma história enraizada numa cultura autoritária. Sempre fez repressão de espaços de participação de outros intervenientes. As suas políticas públicas não são claras para promover o desenvolvimento. O Estado é usado para alimentar as elites e ou mesmo para distribuir favores para quem contribui para a manutenção deste sistema. Este facto faz com que os que estão nas lideranças não se preocupem em produzir ou garantir que o Estado responda aos seus objectivos fundamentais, de garantir a segurança de todos e o bem-estar da sociedade, mas que seja uma “grande vaca leiteira” sob a qual somente mama quem contribui para a sua manutenção sistémica e, por outro lado, os meios de violência de que o Estado se reveste, sejam usados para fins privados.
As pessoas acreditam e sentem que a única forma de estar bem é fazer-se membro do partido Frelimo e, por consequência, ser elegível a ser parte da redistribuição clientelista dos cargos do Estado. E, uma vez que não se exige mérito para que as pessoas interessadas acedam e se mantenham na “grande mesa”, que são os benefícios retirados dos bens públicos, basta que se foquem em ser “operário da máquina repressiva”, cumprindo com uma das duas funções: uma, ser funcionário da máquina repressiva material e, outra, ser operário da propaganda, servindo como bloqueador de todas as formas de participação ou de propostas concorrentes sobre como o Estado deve ser orientado. Quem melhor interpretar uma das funções, melhorar o seu desempenho, em melhores postos será colocado. Consequentemente, vai ter melhores benefícios materiais.
Uma vez que a cultura instalada em Moçambique é de benefício por se ser operário especializado para a repressão, as pessoas deixam de se concentrar em estudar, inovar e contribuir para mudanças que possam prover o desenvolvimento e o progresso material, pois nada disso é reconhecido e valorizado. Existem estados no mundo que são classificados como “democracias autoritárias”, exemplo da Rússia, China e Ruanda. Mas, estes estados têm algo de interessante: enquanto, por um lado, eles conseguem conter as bolhas de erupções públicas, aplicando a vigilância excessiva, a punição severa contra os críticos, oferecem algo interessante; por outro lado, abrem espaço para a inovação técnica com um forte compromisso com a prosperidade material e o bem-estar dos seus concidadãos. A falha do modelo da Frelimo reside justamente aqui: copia-lhe o modelo repressivo, mas não associa a outra parte do modelo que lhe permitiria prover soluções aos problemas e, por consequência, reclamar a sua legitimidade.
As democracias autoritárias do modelo de Ruanda, mesmo que repressivas, elas conseguem justificar a repressão na ideia da soberania do Estado e na retórica de que as pessoas não podem reclamar liberdades de expressão, pois a grande preocupação desses Estados é com mudanças reais na vida material das pessoas que, de forma efectiva, conseguem justificá-las. Temos ouvido esta retórica copiada pela máquina de propaganda da Frelimo, mas tal tem tido pouco sucesso. As mudanças não são visíveis.
Uma outra face do problema é a que o meu amigo e professor de Ciência Política, Domingos do Rosário, me disse numa conversa que travámos sobre os problemas da nossa democracia em Moçambique. Ele argumenta o seguinte: “a falha da nossa democracia tem fundamento no facto de a sociedade civil não ter participado nos Acordos Gerais de Paz, tendo sido um negócio entre a Frelimo e a Renamo, conforme os seus interesses”. Esta tese do professor Domingos de Rosário explica um pouco o facto de que todas as tentativas de reformas do Estado foram forçadas pela Renamo, através de conflitos, sem que a sociedade tivesse participação nelas. São prova disso as recentes negociações do acordo de paz para a desmobilização dos homens da Renamo, que permitiram a realização das eleições provinciais, para além de tudo o que funda o quadro institucional em Moçambique, incluindo as leis eleitorais que nos levam para a actual crise.
A Constituição da República de Moçambique , apesar de ter sido projectada antes do Acordo Geral de Paz, sofreu muitas emendas e integrações para fazer respeitar o Acordo. As negociações subsequentes deram origem à actual configuração dos órgãos eleitorais e do Conselho Constitucional, caracterizado pela partidarização e baixo nível de profissionalização. Isto é, todas as negociais forçadas pela Renamo fundaram-se numa luta sob qual a Renamo poderia colher benefícios para ela também, através do mesmo modelo de sustentabilidade, acomodar os seus membros no Parlamento, nos órgãos eleitorais, no Tribunal Constitucional e, possivelmente, nos órgãos de governação descentralizada que pudesse ganhar (nos municípios e mais tarde nos governos provinciais). O facto de a lei eleitoral indicar os partidos (nominalmente) que devem estar na sua composição e, por outro lado, o Estatuto do Líder da Oposição referir-se ao líder do partido em segundo lugar mais votado, são evidências claras de que, em algum momento, as leis foram feitas para acomodar a agenda da Renamo, que vivia considerando ser-lhe cativo o lugar de liderança na oposição.
Diga-se que a Frelimo percebeu que a Renamo estava sempre preocupada em acomodar-se e não numa agenda de contribuir, efectivamente, para que o Estado tivesse instituições democráticas fortes as quais poderia um dia usar para reivindicar os seus interesses. Igual qualquer organização política que esteja na posse poder político, a Frelimo usou a agenda proposta pela Renamo para convertê-la para o seu próprio benefício e de forma muito astuta. No final, a Renamo acabou aniquilando-se ela própria. Por exemplo, a Renamo colocou como moeda de troca do último acordo de paz as eleições províncias e distritais. Mas, na implementação, a própria Renamo foi vítima da sua proposta, tendo ficando, nas duas eleições provinciais que se seguiram, sem nenhum governador eleito. Conseguiu somente que alguns dos seus membros fossem integrados nas assembleias provinciais. A Frelimo levou tudo!
No meio de uma total fragilização do actor principal com que o Estado poderia dialogar e perante a marginalização da sociedade civil (num contexto de corrupção generalizada, desemprego, forte enriquecimento das elites), existem pessoas que acreditam que os seus problemas passam, somente, por trocar a Frelimo do poder. Esta pretensão tem vindo a falhar via eleições, tal o exemplo das eleições de 2024. Com as reclamações de fraude eleitoral, esses grupos querem ganhar a legitimidade das suas reivindicações através das idas para as ruas, o mesmo que lhes está a ser recusado. Por consequência, criam os efeitos da violência que temos vindo a assistir. Temos, por um lado, um governo autoritário que se serve dos júris imperi para reprimir, irresponsavelmente, os manifestantes e, por outro lado, os manifestantes que acham que não têm nada a perder, senão desafiar um leviatã que está a falhar nas suas responsabilidades básicas e está a usar o argumento da força que detém para se impor.
Fica evidente que temos aqui um problema claro, com o qual temos de trabalhar, enquanto sociedade, para resolvê-lo: restabelecer a justiça eleitoral, colocar os eleitos na agenda de renegociar o contrato social. A ideia de fazer face a um leviatão ferrenho, de que a sociedade o alimentou passivamente, por forma a retirar-se o poder de abruptamente, a nosso entender, é inviável a curto prazo e tem consequências inestimável sob ponto de vista de destruição. Isto é, o actual governo, caracterizado por uma cultura autoritária e, evidentemente, detentor dos meios de violência do Estado, vai usá-los para defender os seus interesses sob a evocação do Iuris imperium (o direito que se confere de exercer a sua soberania).
O mais importante que estas manifestações trouxeram, e que nos devem ensinar, é que precisamos de, a partir de hoje, renegociar o contrato social e fundar novas instituições. Isto passa, ao nosso entender, por três momentos: o primeiro é de garantir um compromisso sério de diálogo social e responsabilização dos que vão estar a dirigir o Estado nos próximos 5 anos; o segundo é de reformar as instituições do Estado, incluindo os órgãos de administração eleitoral e o Conselho Constitucional, para entidade independentes, bastando, por exemplo, copiar o que acontece na vizinha África do Sul (o Conselho Constitucional deve passar a um tribunal que funcione na mesma lógica que o Tribunal Supremo, sob ponto de vista da sua Governação) e; em terceiro lugar, ter políticas claras e concretas sobre áreas prioritárias de desenvolvimento por forma a produzirem resultados imediatos e devolverem a credibilidade das instituições da administração do Estado que, neste momento, está praticamente diluída.
Vi um vídeo de uma iniciativa promovida por um grupo de intelectuais, designado “Manifesto Cidadão” para uma conferência nacional para a “Refundação do Estado”. Parece-me um passo interessante! Contudo, já demos este tipo de passos mas falharam porque não são ouvidos ou valorizados. Não passam dos efeitos que textos iguais a estes têm – são lidos, agradam a alguns. Mas, quem deve usar as ideias produzidas simplesmente cataloga-os como crítica contra os que governam e, por isso, ideias de inimigos políticos. Consequentemente, tudo fica ultrapassado. O País não valoriza ideias, mas sim compensa a capacidade dos indivíduos em demostrarem as suas competências de serem aduladoras.
Em vez de violência, sou de opinião que o compromisso com a justiça é superior e deve passar pela renegociação da valorização das liberdades e de participação. Para o efeito, a Assembleia da República deve deixar de ser um mero espaço através do qual se faz a representação decorativa da deliberação democrática sob a qual se acomodam os “bons operários” dos partidos políticos. Deve sim ser um espaço de acolhimento das ideias da sociedade para transforma-las em leis. A Assembleia da República deve passar de um espaço de ovação do trabalho do governo, mesmo que tal seja medíocre na resposta dos problemas sociais, para, sim, um espaço de supervisão e sob o qual o governo presta contas, formalmente, aos moçambicanos. Sem uma instituição efectiva de supervisão, participação, debate e deliberação comprometida com a nação, nenhum governo vai ser capaz de garantir a paz social e conter o descontentamento.
As evidências de fraude eleitoral, as evidências de exclusão e a violência comprovada do Estado beliscam, efectivamente, a legitimidade da Frelimo. Ela própria pode se ver obrigada a abrir espaços de negociação para criar um ambiente sob o qual irá voltar a governar. Por isso, este espaço deve ser usado para renegociar o contrato social permitindo a participação da Sociedade, para além dos partidos políticos.
Qualquer um que ascender ao poder e vier a governar, pela maneira como as instituições do Estado estão configuradas actualmente, vai-se aproveitar delas para implementar os mesmos modelos de governação actuais, na lógica da pedagogia do oprimido de Paulo Freira de que o que mais inspira o oprimido a lutar é a possibilidade de substituir o opressor e ser igual a ele. O único resultado que teríamos seria mais violência e não mudanças, pois teríamos somente alterado as posições e estimulado o ódio.
Por isso, a nossa perspectiva é de que temos de aproveitar o momentum para negociar o contrato social e a Frelimo deve abrir-se a essas renegociações. Alias, eles já deram sinal disso, através da sua Comissão Política. As mudanças institucionais são elas que irão garantir, a médio prazo, que haja mudanças e, por consequência, a alternância do poder de um Estado com instituições reorganizadas para um maior compromisso para com a Sociedade. É preciso puxar a Frelimo para o argumento de que o seu modelo de governação está gasto, precisa de ser revisto. E, neste processo de revisão do modelo de governação, deve considerar a participação cívica como o caminho a percorrer. Como mostrámos, existem países de democracias autoritárias, mas que conseguem sobreviver e manterem-se firmes à custa da venda da ideia do progresso material, o mesmo que a Frelimo busca copiar mas é incapaz de interpretar. A vantagem é que podemos aproveitar negociar para que Moçambique tenha espaço de não ser igual a esses países, seja democrático e desenvolvido.
O caminho passa por forçarmos a Frelimo a negociar reformas por forma a agirmos sobre a raiz do problema – Reforma do Estado – conforme o sugerido pelo movimento Manifesto Cidadão. Precisamos de forçar a negociação do contrato social, corrigindo os erros do passado em que os dois actores políticos estiveram sozinhos, mantendo as negociações para os seus próprios interesses. Mas uma negociação que inclua a sociedade nos seus diversos campos: político, religioso, académico, defesa, económico, media, justiça, saúde, etc. Pois, uma simples acção sobre os efeitos, vai levar-nos, um curto espaço, ao mesmo debate e mesma violência. (EN)