– Uma das vítimas mortais é um motorista zimbabueano, cujo camião foi usado pela população para bloquear a estrada.
Por António Cumbane
Ressano Garcia (MOZTIMES) – O funeral do blogger “Mano Shottas”, baleado mortalmente pela Polícia na noite de quinta-feira, resultou em mais dois assassinatos pela Polícia, este sábado, na vila de Ressano Garcia, em Maputo.
Fátima Ibraimo, admiradora do jovem Mano Shottas, foi uma das centenas de pessoas presentes no velório do “herói de Ressano Garcia”, que teve início às 13h deste sábado, na vila fronteiriça.
“Estamos bastante angustiadas. Foi-se o nosso ídolo do Ressano”, disse Fátima. “Estamos aqui para prestar o último adeus.”
“Ele foi morto sem culpa nenhuma. Estava a filmar ao vivo quando as forças da UIR (Unidade de Intervenção Rápida) lançaram gás lacrimogéneo nos bairros próximos da estrada que dá acesso à fronteira”, lamentou Justina Jorge, que também esteve presente no funeral.
O dia parecia normal na pacata vila de Ressano, que tem sido um símbolo de manifestações de repúdio aos resultados das eleições e de resistência à opressão policial durante os protestos.
Previa-se que pudesse haver violência durante o funeral, marcado para o início da tarde, a ser realizado num cemitério à beira da principal estrada, a Estrada Nacional Número 4. Como já aconteceu em outros locais onde vítimas mortais da violência policial foram enterradas por grandes multidões, temia-se que a população ocupasse a estrada, durante o cortejo fúnebre.
Ao longo da N4, a Força de Intervenção Rápida montou três posições, com agentes fortemente armados e mascarados com panos pretos, deixando apenas os olhos e a boca à mostra.
O velório decorreu calmamente na residência familiar da vítima até pouco antes das 13h. Como era previsto, logo após o fim do velório, uma grande multidão seguiu para o cemitério.
Seis jovens carregavam a urna com os restos mortais de “Mano Shottas”, coberta com um lençol branco e uma bandeira da República de Moçambique. À frente, seguiam senhoras vestidas a rigor com camisetas de Venâncio Mondlane e do PODEMOS. Quase todos na multidão erguiam três dedos, sinalizando a posição de Venâncio Mondlane no boletim de voto das eleições presidenciais de Outubro passado.
Ao chegar à estrada, a população furiosa bloqueou a via, interrompendo o tráfego nos dois sentidos (África do Sul e Moçambique). Um camionista zimbabueano foi obrigado a colocar o seu camião perpendicular à estrada, bloqueando a passagem.
Uma das três posições da UIR estava muito próxima do cemitério e iniciou uma discussão com os manifestantes. Outro camionista foi igualmente obrigado a bloquear a estrada com o seu camião.
A Polícia tentou obrigar os camionistas a desbloquear a via, mas as chaves dos camiões haviam sido retiradas pela população.
Foi então que surgiu a “ordem”, uma palavra que significa obediência. Um comandante da UIR, que dialogava com o povo, incluindo um zimbabueano que acabaria por ser morto a tiro num dos camiões que bloqueava a estrada, recebeu ordens para disparar.
“Ele (o comandante) disse ‘às ordens’ e os agentes começaram a disparar contra o camionista. Depois, veio um grupo de seis jovens com as mãos levantadas, sinal de rendição, pedindo para sair do cemitério em paz. Mais uma vez, ouvimos ‘às ordens’, e os polícias dispararam contra eles, matando um jovem”, contou Francisco Samo, que estava entre a multidão que acompanhava o funeral de Mano Shottas.
“Não tivemos como fazer nada. Agentes da Polícia de Protecção estavam a ajudar as vítimas”, relatou.
O som dos disparos dispersou muitas pessoas, principalmente as senhoras que vendiam refeições nas barracas localizadas à beira da estrada. A confusão prolongou-se por algumas horas, e o tráfego só foi reaberto cerca de três horas depois, por volta das 17h, após agentes da UIR dispararem várias balas reais contra a população.
“Eles são agressivos como cães. Não faz sentido disparar com armas de fogo contra cidadãos indefesos”, lamentou, indignado, um membro da comunidade que esteve no velório de Mano Shottas.
A equipa de reportagem do MOZTIMES recolheu várias cápsulas de balas verdadeiras e cartuchos de bombas gás lacrimogéneo espalhados pela estrada, após cerca de duas horas de disparos da UIR contra civis — um testemunho de uma violência brutal.
No regresso a Maputo, o congestionamento era enorme, com longas filas de camiões que só começaram a movimentar-se após horas de interrupção de tráfego. (AC)