Por Hilário Chacate, Docente de Relações Internacionais
Maputo (MOZ TIMES) – Com a adopção da Constituição de 1990, o Governo da Frelimo reconhecia que o modelo monopartidário havia fracassado e não conseguira resolver os problemas dos moçambicanos. Para além deste figurino político-económico ter sido objecto de muita contestação, quer a nível doméstico, quer a nível regional e internacional, foi usado pela Renamo como argumento para pegar em armas e combater o Governo que o havia concebido.
Com as reformas constitucionais de 1990, muitas das reivindicações da Renamo ficavam, não só integradas no texto constitucional, mas também ultrapassadas, pelo menos nos seus aspectos centrais. Ou seja, o Governo de Moçambique esvaziava os argumentos que justificavam a guerra levada a cabo pela Renamo. A Constituição de 1990, para além de abolir o sistema político monopartidário, criou espaço para uma maior inclusão política.
Foi neste contexto que o País passou, desde 1994 a esta parte, a realizar eleições. Com este exercício, esperava-se que o povo passasse, através do sufrágio universal, a escolher os seus governantes, por um lado. Por outro, esperava-se que o exercício eleitoral servisse como mecanismo de distribuição do poder, como recurso, num mercado político concorrencial, em que vários actores expõem os seus projectos, através dos seus manifestos eleitorais.
Volvidos trinta anos após a realização das primeiras eleições gerais em Moçambique, constata-se que as mesmas, no lugar de servir como elemento de reconciliação entre os moçambicanos, de consolidação da paz, democracia e desenvolvimento, têm sido uma das fontes de violência. Com excepção da primeira eleição de 1994, não há registo de nenhuma outra, das 7 realizadas até aqui, que tenha acontecido e terminado sem violência. No final de cada sufrágio, os partidos da oposição contestam os resultados, para o que acusam o Governo da Frelimo de influenciar os resultados a seu favor, através do enchimento de urnas, da manipulação das instituições que administram os processos eleitorais, nomeadamente, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Conselho Constitucional (CC). Venâncio Mondlane é mais uma das vozes que se junta aos já falecidos Afonso Dhlakama e Daviz Simango, para contestar os resultados eleitorais em Moçambique.
É no contexto acima descrito que, há dias, contactou-me um jornalista de um dos órgãos de comunicação social mais mediáticos da actualidade em Moçambique. Ele pretendia formular-me um convite para participar de um debate televisivo, que, no seu entender, era de grande utilidade para a sociedade moçambicana. A discussão subordinava-se ao seguinte tópico: “Venâncio Mondlane convoca marcha pacífica nacional: procede?”
Depois de um exercício de reflexão, concluí que não era, para mim, relevante e, muito menos, útil, participar daquela discussão. No meu entender, a mesma não identificava e, muito menos, atacava a raiz do real problema por detrás da “rebeldia” do Mondlane e dos seus seguidores. Debater as marchas convocadas por Venâncio Mondlane, os ataques militares protagonizados pelo extinto braço armado da Renamo como forma de contestar os resultados eleitorais, o uso desproporcional da força, por parte da polícia que reprime aos manifestantes, a dor, o sofrimento, as mortes que ocorrem nos períodos eleitorais em Moçambique, a inoperância das instituições que administram os processos eleitorais, a suposta fraude eleitoral feita pela Frelimo, dentre outros males que resultam destes processos, nos tem distraídos do real problema. Depois desta introspeção, mesmo discordando do tópico proposto para o debate, decidi juntar-me ao painel da discussão, como forma de contribuir para a desconstrução das narrativas e percepções equivocadas em torno do nó de estrangulamento eleitoral em Moçambique.
É importante sublinhar que o percurso histórico de Moçambique como um Estado em busca de afirmação de uma identidade própria tem sido influenciado, para além de factores endógenos, por vários interesses exógenos. Por conseguinte, muitas das decisões estruturantes que o Estado moçambicano foi tomando, ao longo da sua história, não foram espontâneas ou por convicções próprias, mas, impostas, contra a vontade de uma certa elite. Associado a esta combinação de factores domésticos, regionais e sistémicos que moldaram e configuraram a nossa jovem democracia, esteve um contexto caracterizado por um elevado grau de desconfiança entre os antigos beligerantes (o Governo e a Renamo).
O modelo eleitoral moçambicano foi concebido numa lógica de partidarização, politização e bipolarização das instituições que administram os processos eleitorais. E este é o verdadeiro nó de estrangulamento por de trás de todos males eleitorais em Moçambique. E enquanto não resolvermos este imbróglio, iremos, de eleição e eleição, sentar para assistir ao mesmo filme caracterizado por violência pré e pós-eleitoral.
Com a introdução do multipartidarismo, o Estado moçambicano, no lugar de criar instituições independentes e profissionalizadas para administrar os processos eleitorais, optou por um modelo bipolarizado, que acomodava e defendia interesses partidários e políticos. Passados 34 anos após a adopção do multipartidarismo, constata-se, com alguma decepção, que os membros que compõem a CNE e o CC, nunca colocaram, em primeiro plano, os interesses colectivos da nação, dentre eles, promover eleições justas, livres e transparentes. Quase todos os membros que compõem estas instituições representam e defendem, a todo custo, interesses políticos e dos partidos que os mesmos representam.
Acreditar que destas instituições, com um percurso histórico caracterizado por promiscuidade entre interesses políticos, partidários e do Estado se podem produzir eleições com lisura, é uma vã tentativa de contrariar toda uma lógica teórica defendida pelos precursores clássicos das teorias que vaticinam que os homens em todas suas acções buscam aceder, preservar e manter o poder.
Seria ingenuidade acreditar que, num jogo em que os seus protagonistas são, simultaneamente, jogadores e árbitros ao mesmo tempo, se pode esperar uma partida e resultados justos. Lamentavelmente, esta é a realidade das eleições em Moçambique, em que os partidos políticos que concorrem às mesmas, compõem os órgãos que administram os processos eleitorais em que estes participam.
Diante deste quadro, pode-se constatar que o modelo eleitoral moçambicano, para além de estar obsoleto, nunca esteve em condições de produzir eleições consensuais, justas, livres e transparentes. Pelo contrário, a forma como está concebido só pode ser a fonte de discórdia entre os moçambicanos. Outrossim, existe uma percepção generalizada de que as instituições que administram os processos eleitorais em Moçambique, para além de não serem independentes das amarras do partido no poder, perderam credibilidade.
Mediante estes factos, não podemos continuar a insistir com o actual modelo eleitoral, que se mostra completamente obsoleto, esgotado e desacreditado. É urgente e inadiável reformarmos as instituições que administram as eleições em Moçambique. De outra forma, continuaremos a atirar no escuro e acusar os Venâncios desta vida, Afonso Dhlakama, a polícia, por reprimir aos manifestantes no período eleitoral, a Frelimo por cometer fraude, bem como ao Dom Carlos Matsinhe, por anunciar resultados de eleições tidas como fraudulentas.
Como nos referimos antes, a CNE e o CC precisam de ser instituições independentes e profissionalizadas. Para que isto aconteça, é imperioso que estas instituições sejam despartidarizadas, se desvinculem de interesses políticos e partidários e se preocupem em adoptar melhores estratégias para promover eleições livres, justas e transparentes.
Seria, igualmente, útil que Moçambique se socorresse do Direito Comparado, para ver como é que outros Estados, quer, a nível da região (casos da África do Sul e do Botswana), quer a nível do continente, no geral (Cabo Verde e Gana), realizam eleições pacíficas e com lisura. É importante que os critérios para se tornar membro da CNE e do CC sejam definidos com rigor, por forma a garantir uma selecção de personalidades com reconhecido mérito e que coloquem o Estado acima de interesses políticos e partidários.
É importante, também, compreender que o contexto que ditou a criação da actual CNE e do actual CC alterou, significativamente. Mais de 30 anos já se foram e já não faz sentido absolutamente nenhum, manter instituições representadas por partidos políticos, para decidirem sobre jogos em que eles mesmos são participantes. Se, ainda tivermos algum amor por esta pátria e se quisermos salvá-la da violência, da dor, do sofrimento, de mortes desnecessárias, do ódio de uns contra outros, da discórdia, dentre tantos outros males, precisamos de ter a coragem de reformar as instituições e criarmos uma CNE e um CC profissionais e livres das amarras partidárias e políticas, sobretudo, do partido no poder. (HC)