Por Domingos M. Do Rosário & Egídio Guambe[i]
Maputo (MOZTIMES) - Este texto coloca uma hipótese pragmática de reinvenção da abordagem de construção de Moçambique como Estado, no sentido de capacidade de gestão da sociedade com aspirações de bem comum. Parte da ideia de que a situação política actual, caracterizada por manifestações quase que generalizadas por todo país, quer nas ruas quer nas redes sociais por outros meios, é, factualmente, uma conjuntura crítica para uma mudança radical da perspectiva de negociação entre o Estado e sociedade. O texto ignora deliberadamente a entrada a partir dos partidos políticos, porque sendo actores de intermediação, a sua validade deve ser anulada quando a relação entre o Estado e a sociedade, actores principais, chega ao nível de esgotamento da confiança, ao nível de se instaurar a violência não legitimada, como mecanismo de acção.
Com efeito, Moçambique é um Estado ainda em construção, as suas estruturas de governação, instituições, organizações, forma de indigitação de titulares de órgãos públicos (incluindo órgãos de Administração Eleitoral, Conselho Constitucional) bem como as modalidades de encontro com a sociedade continuam voláteis[ii]. Estas são, em parte, as principais razões das cíclicas crises. Nos parece, no estágio actual da crise, que é chegado um momento de mudança da fórmula que historicamente legitimou a relação entre o Estado e os partidos excluindo simultaneamente a sociedade.
De herança de uma guerra de emancipação colonial, a construção do modelo de gestão do Estado em Moçambique foi sempre pensada a partir da pacificação de guerras[iii], com argumento centrado na paz. A constelação dos interesses, a invenção das instituições, bem como a sua composição, foi sempre imaginada sob o ponto de vista de consenso para a paz. Aliás, há evidências claras de que, desde os acordos de paz de 1992, e a fundação da democracia multipartidária, os paliativos da construção da paz foram sempre acomodados, na ideia de consenso e não violência entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO, sem, no entanto, se prever a integração da sociedade.
Esta perspectiva impediu a construção de uma matriz inclusiva, pensada a partir dos cânones da justiça (conceito clássico desde Platão), que, historicamente, constituem o principal móbil da acção colectiva dos Estados. A crise actual, sobretudo os levantamentos populares, que ganharam mais intensidade em resultado da fraude eleitoral, ou os protestos veiculados a partir das redes sociais, são, sem dúvida, a demonstração da necessidade de “edificar” formas mais “justas” (no sentido de inclusão, transparência, responsabilidade) nas modalidades de governação. Com as fortes evidências que nos chegam do fim do bipartidarismo (FRELIMO Vs. RENAMO) com a erosão política e eleitoral da RENAMO, urge repensar e reconstruir novas fórmulas de gestão do Estado. Assim, para ultrapassar a crise profunda que afecta Moçambique, desde os 1990 deve-se apostar numa metodologia de diálogo virada para um modelo de “justiça social” e não uma negociação baseada na acomodação para a paz e nos partidos políticos. A paz, apesar de ser um conceito importante, ela deve ser a consequência da aplicação da justiça. Para a acção concreta, vis-à-vis o contexto actual, desta perspectiva levantamos três principais cenários que nos parecem fundamentais:
- Anular as Eleições: um dos primeiros actos de coragem, para reinvenção dos modos de fazer política para um Moçambique sustentável, seria anular o processo eleitoral. Organizadas na base de um modelo partidários das instituições de gestão eleitoral, não existem condições para uma solução que seja justa. Com efeito, esta é uma crise estrutural, resultante de um processo de exclusão social, política e económica de longa duração, mas cujo epicentro foram as eleições Gerais (Presidenciais e Legislativas) e provinciais (Governadores e Assembleias). Neste contexto, é necessário encontrar, em primeiro lugar, alternativas para ultrapassar o “caos” em que Moçambique se encontra. A nossa experiência prática de 30 anos de gestão de eleições, a nível nacional e continental, nos permite duvidar da integridade e transparência destas eleições, devido às graves irregularidades materiais verificadas, sobretudo no dia da votação. Se o Conselho Constitucional, no âmbito do seu funcionamento despir as “cores partidárias” e analisar, com isenção, não só o mérito das reclamações vindas dos partidos políticos, mas também o custo social e político da sua decisão para o futuro de Moçambique, anular estas eleições deveria ser uma hipótese a considerar pelo Conselho Constitucional. Não temos reservas de que, nas circunstâncias actuais, qualquer que seja a solução na base do modelo em voga, não seria capaz de recompor as fissuras do tecido social. A disjunção das placas sociais poderão ocasionar uma grave dificuldade de legitimidade e do sentimento de bem-estar comum.
- Formar um Governo de Transição: uma vez as eleições anuladas, seria um passo importante convidar o actual Presidente da República a propor uma saída pacifica e reconciliatória com a sociedade. Essa saída passaria pela Constituição de um Governo de Transição, com duração de entre 12-18 meses, com termos de referência claros, não só sobre a sua composição, mas com um mandato sobre a organização de eleições. A modalidade de gestão das novas eleições seria acercada num acordo de constituição de um actor imparcial fora do modelo multipartidário, mesmo que seja, transitoriamente, com uma gestão apoiada pela “comunidade internacional” ou instituições especializadas. Em situações de crises profunda entre o Estado e a Sociedade, igual a esta em que nos encontramos em Moçambique, o Governo de Transição pode funcionar não só como “cancelador” das crises sociais e políticas, mas pode servir, igualmente, de dissuasora e restaurador de um ambiente de um mínimo de confiança. Só um modelo consensual e de equilíbrio pode permitir a saída imediata desta crise[iv] pós-eleitoral. Durante a vigência do Governo de transição, os diferentes actores envolvidos devem investir tempo a trabalhar em reformas políticas inclusivas (exemplo: refundação do Estado através da despolitização), e desenvolver plataformas de diálogo para construir consensos entre os diferentes grupos da sociedade, actores locais influentes, que a discussão sobre a “paz e reconciliação” nos últimos 20 anos, em Moçambique, deixou “fora do sistema”[v];
- Refundar um modelo de justiça para construir o Estado: a tendência dos resultados eleitorais de 2024 mostrou que a abordagem bipartidária, assim como os arranjos precários de negociação da paz, doravante não se apresenta como abordagem sustentável de construção do Estado como entidade de partilha de destinos. Com efeito, as dinâmicas de construção do Estado Moderno são centradas na ideia do bem-comum, entendido através da construção de um contrato, seja para protecção da propriedade individual, seja para confiar num ente garante da estrutura colectiva. Em contexto de contrato, o principal móbil é a percepção de que o que se delega é equivalente ao que se recebe de volta. Para que esta percepção seja factual, as instituições se apresentam como principais dispositivos através das quais a colectividade fixa o seu ideal e garante uma interacção estável e previsível. Os Estados mais estáveis no mundo apostaram num modelo de desenvolvimento institucional credível. A situação actual de Moçambique apresenta-se como uma fundamental janela para recredibilizar as instituições. Diferentemente do que sucedia no contexto de emancipação colonial, Moçambique, hoje, tem bases fundamentais para estabelecer uma estrutura de organização e funcionamento, baseado num projecto de configuração do bem-estar colectivo. É uma agenda que deve ser tomada com responsabilidade, para além de simples interesses dos actores políticos no poder. (DMR e EG)
[i] Professores de Ciência Política e Administração Pública, cidadãos moçambicanos residentes em Moçambique.
[ii] Enquanto os Juízes do Conselho Constitucional, que funciona como tribunal eleitoral de última instância, são indicados pelos partidos Frelimo e Renamo, à luz do Acordo Geral de Paz de Roma, de 1992, os órgãos eleitorais, que são de tipo partidário, registaram algumas reformas, no âmbito do acordo de paz (2014) para acomodar os interesses clientelistas dos partidos com assento parlamentar. Por exemplo, as últimas reformas de 2014, que tornam Moçambique num caso único no mundo, consistiram não só na cooptação dos membros da sociedade civil, por cada um dos partidos com assento no parlamento, mas também na indicação de membros de partidos políticos para fazerem parte nas mesas de voto.
[iii] Guerra de agressão e depois guerra civil (1976-1992); 2ª Guerra civil (2012-2014). Desde 1975 foram assinados 4 acordos para a estabilidade e paz em Moçambique: (Acordo de Nkomati -1984; Acordo geral de Paz de Roma- 1992; Acordo de cessação das hostilidades- 2014; Acordo de paz Definitivo 2018). A maior parte destes acordos teve forte implicação de actores internacionais e exclusão da sociedade. Sobre a guerra civil vide. E. M Genoud, M. Cahen e D. M Rosário (org). The War Within: New Perspectives on the Civil War in Mozambique, 1976-1992. Suffolk: James Curry; Nova York: Boydell & Brewer, 2018
[iv] H. Hegre & F. Hanne, “Democratization and post conflict transitions”. In Hewitt, J. (dir.) Peace and Conflict New York: Routledge, 2010
[v] G.Hyden, Beyond Ujamaa in Tanzania: Underdevelopment and an Uncaptured Peasantry. California: University of California Press, 2022