Por: João Feijó
Maputo (MOZTIMES) – Desde as eleições de 9 de Outubro, Moçambique vem assistindo a uma radicalização dos discursos e a uma espiral de violência. Para a próxima quinta-feira, dia 7 de Novembro, está marcada uma ampla manifestação nas ruas de Maputo, sendo expectável uma resposta agressiva por parte das forças de defesa e segurança. Receia-se um banho de sangue nas ruas da capital e um espectro de destruição, em resultado da ira popular.
A grande catarse: concretização de um levantamento popular
Ao longo das últimas semanas assistiu-se a uma grande agitação de massas, que evidenciou a base social de apoio de Venâncio Mondlane. Por um lado destacam-se jovens de zonas suburbanas e peri-urbanas das grandes cidades, com destaque para Maputo e Matola, mas também Tete, Chimoio, Nampula ou Nacala-Porto, assim como Beira e Quelimane. Ao lumpen urbano (jovens descamisados agindo como napharamas e vivendo do desenrasca), juntam-se estudantes ociosos (num cenário de interrupção das aulas), que transformam o protesto quer numa cartarse, quer numa celebração festiva. Noutros vídeos verifica-se a adesão massiva de mulheres adultas. Mais recentemente-se, as classes médias dos bairros centrais (pequenos e médios comerciantes do sector formal, trabalhadores independentes e especialistas) organizaram as suas marchas nas principais artérias das cidades. Ao princípio da noite, nos prédios do distrito urbano de Kamfumo centenas de moradores iniciaram um panelaço pelas varandas dos edifícios, provocando amplo ruído com tachos e vuvuzelas. Os protestos estendem-se por distritos rurais, do Norte ao Sul do país, com relatos de incidentes violentos em Ressano Garcia, Mecanhelas, Gondola, Chalaua ou Namialo, entre muitos outros locais, afectando os principais corredores de transporte e as economias dos países do hinterland.
As imagens demonstram que as tentativas de manifestação foram geralmente reprimidas pela polícia, incluindo quando envolvia as classes médias das cidades. Nas redes sociais circularam vídeos de lançamento de gás lacrimogénio sobre jornalistas e residências, mas também de polícias da República de Moçambique atingidos por elementos da Unidade de Intervenção Rápida, em actos desproporcionais e desorganizados. Jovens foram atingidos por balas verdadeiras, disparadas de forma displiscente por agentes da polícia, sem posterior assistência às vítimas. Organizações da sociedade civil contabilizam mais de 20 mortos e centenas de feridos e a Ordem dos Médicos e dos Advogados manifestaram amplamente críticos em relação à conduta policial. À violência policial seguem-se acções de vandalização da população, nomeadamente bloqueio de estradas, queima de pneus e destruição de infraestruturas. Em alguns casos verificaram-se pilhagens. Os principais alvos têm constituído as sedes do partido Frelimo, residências de elementos da polícia ou instalações de empresas de telecomunicações.
Os vídeos partilhados nas redes sociais permitem perceber que, nos municípios governados por partidos da oposição (como Beira e Quelimane), as marchas foram mais ordeiras. Significativas molduras humanas foram acompanhados por elementos da polícia, numa convivência pacífica.
A violenta resposta da polícia catalizou a revolta popular, agravando o sentimento anti-Frelimo. Agentes da polícia foram linchados ou insultados pela população, acusados de criminosos, de infractores da Lei e de violadores dos direitos das populações.
O prolongamento do protesto ao longo de uma semana aumentou a adesão popular e a expectativa de mudança política. A partir do estrangeiro, o líder da oposição organiza lives diárias, com longos discursos, por vezes demagógicos, de denúncia política e propagação de rumores. Tal como a Frelimo, o movimento de Mondlane não apresenta uma ideologia política amadurecida baseando-se na exploração de um sentimento e objectivo comum: derrubar o governo da Frelimo, apontado como o bode expiatório de décadas de exclusão social. Surfando sobre uma onda de descontemento popular, Mondlane apanha a boleia deste tsunami social, formado ao longo de décadas de exclusão e que não apresenta hipótese de reversão. Com um discurso de inspiração religiosa, apelando ao jejum e oração para protecção divina, Venâncio apresenta-se como que um messias, capaz de devolver a esperança aos seus seguidores e “libertar Moçambique”.
A letargia do partido Frelimo
O entusiasmo e capacidade de mobilização dos membros da oposição contrasta com a passividade dos apoiantes do partido Frelimo. Capaz de reunir grandes molduras humanas durante o período eleitoral, o partido no poder apresenta hoje dificuldades para mobilizar os seus simpatizantes, incluindo nos locais onde obteve vitórias expressivas. Nas redes sociais, a popularidade de Daniel Chapo não tem qualquer comparação com a de Venâncio Mondlane. Qualquer post de Filipe Nyusi na sua página do facebook, é gerador de milhares de comentários críticos por parte dos internautas, frequentemente insultuosos. Acções de vandalização da estátua do Presidente da República numa escola secundária em Boane provocam uma grande aderência colectiva. Com alguma ingenuidade, comentadores simpatizantes do partido Frelimo endurecem os seus discursos, frequentemente de forma provocatória. Nas redes sociais são publicitadas as respectivas moradas e matrículas de automóveis, acompanhados por ameaças de linchamento popular.
Contagem de espingardas
Com o aproximar da grande manifestação na cidade de Maputo, a sociedade moçambicana apresenta-se cada vez mais polarizada. Perante os obstáculos criados pelo Governo ao exercício de direitos civis, Venâncio Mondlane descentralizou a luta política, conferindo a iniciativa do protesto aos seus apoiantes nos respectivos bairros. Através das redes sociais solicitou a intensificação das manifestações para os dias 5 e 6 de Novembro, convocando uma mega concentração no centro da cidade de Maputo para o dia 7. Na mensagem, exorta a população a “exercer o seu direito de auto-defesa com todos os meios disponíveis”. O evento está a galvanizar grande parte da juventude da capital, que se fará presente à cidade num movimento não organizado. Num ambiente de tensão, jovens desprovidos de esperança manifestam-se disponíveis para morrer pela sua liberdade.
Este ambiente de extrema agitação popular contrasta com a passividade do Presidente da República, que resumiu a sua comunicação à Nação a um post do facebook. Ao Ministro da Defesa foi incumbida a responsabilidade de, num tom intimidatório e ameaçador, explicar que os militares estarão preparados para manter a ordem no dia 7 de Novembro. A um intenso problema de cariz político-económico, que merecia uma intervenção sensível e aglotinadora por parte do chefe de Estado, o governo responde de forma securitária: cortando a internet, fiscalizando a entrada na cidade de Maputo e colocando a tropa na rua. Em vez de reconhecer os excessos perpetuados pelas Forças de Defesa e Segurança, geradores de grande revolta popular contra o Governo, em vez de visitar as vítimas e prometer a protecção do Estado, o Ministro da Defesa projectou um conjunto de vídeos, criteriosamente seleccionados, com vista a propagar a narrativa do líder da oposição instigador da violência. O Ministro destacou a elevada moral dos militares moçambicanos, contrariada nos depoimentos de militares descontentes, em vídeos que circulam nas redes sociais, em que manifestam apoio ao levantamento popular. No meio deste clima de tensão que se vive na capital, o Director do SISE envolve-se num “acidente de viação” mortal em Mapai, a mais de 200km de Maputo, dando asas às mais diversas teorias de conspiração e de traição no seio do Estado. Por detrás de toda a aparente musculatura, as evidências parecem demonstrar que o sistema assenta num castelo de cartas. Contudo, a existência de muitos antigos combatentes com treino militar e, eventualmente, detentores de armas nas suas residências, tornam o cenário bastante imprevisível.
Uma quinta-feira sangrenta?
Grande parte dos moçambicanos conheceu a experiência directa ou indirecta de uma guerra civil de 16 anos, apresentando-se particularmente apreensivos em relação à crescente radicalização dos discuros, sem que seja visível no horizonte uma solução política. O país enfrenta o desafio imediato de evitar uma tragédia nas próximas manifestações de 7 de Novembro. A concentração de centenas de milhares de jovens nas artérias da cidade de Maputo, sem um horário, um ponto de encontro, um percurso definido e um destino, correrá o risco de se transformar num caos social, sobretudo se se repetir o excesso de zelo das forças de defesa e segurança. De forma a evitar uma quinta-feira sangrenta, é do interesse do Governo de Moçambique a aproximação à organização do evento, com o objectivo de acordar um trajecto e assegurar as condições de segurança, tal como aconteceu em municípios como Beira ou Quelimane. A desorganização de um evento desta dimensão comprometerá a segurança de milhares de moçambicanos, que o Governo de Moçambique e o líder da oposição afirmam representar. A verificação de uma tragédia provocará feridas no tecido social, constituindo um enorme obstáculo à unidade nacional, independentemente de quem vier a governar. (JF)